19 outubro, 2009

Garotos e mocinhas.


Magda deve ter uns 40 anos. É uma jovem senhora. Sorridente, sempre. Trabalha na padaria que fica vizinha à minha casa. Costumo bater papo com ela, quando vou lá, umas três ou quatro vezes por semana, ler meu jornal e tomar o de sempre: "um suco de laranja com gelo sem açúcar; um café coado; um pão na chapa". Vez por outra ela pergunta, meio séria, meio de sacanagem: "E aí, A., o que há de novo no mundo hoje ?". E eu faço uma versão pessoal da "folha corrida", resumindo em duas ou três frases o escândalo político da vez ou a última vitória do flamengo.

Magda é uma das pessoas mais bem-humoradas que conheço. Aquela padaria pode estar um inferno, com três camadas de gente em frente ao balcão, muitas com caras de poucos amigos, mas ainda assim, Magda sempre se sai com uma frase amável ou com uma gentileza a todo pedido mal-educado. E como tem gente mal-educada nesse mundo. Confesso que foge ao meu entendimento como alguém pode ser ríspido frente à suavidade do sorriso de Magda.

Há poucas coisas que me irritam mais que má-educação. Dessas, quem sabe apenas uma consiga invariavelmente me tirar do sério. É a falta de respeito. Não falta de respeito qualquer, mas essa falta de respeito classista, de quem acha que pode tratar qualquer um que esteja num patamar inferior da pirâmide salarial como quem trata um cachorro.

É comum ouvir chamarem a Magda de "mocinha". "Mocinha, cadê meu sanduíche ?". "Mocinha, o café é com leite, viu?". "Mocinha...". Isso vindo da boca de madames e monsieurs de saltos-altos e gravatas, muitos deles mais jovens que a Magda.

Seguro forte meu jornal e me controlo para não encarar o cidadão ou a cidadã e dizer-lhe algo... Respiro fundo.

[Acabo lembrando da Jane Elliot e seu incrível documentário "Blue eyed". Quem não conhece, deveria conhecer. Dá até mesmo pra ver no youtube, em pedacinhos. Elliot era uma professora primária que, logo depois da morte do Luther King, decidiu ensinar o que é preconceito a seus alunos, de uma maneira prática. Escolheu um grupo (os de olhos marrons) e explicou para a classe que aquele grupo era inferior e durante um dia, eles deveriam ser segregados. [No dia seguinte, os grupos se invertiam]. Os resultados são impressionantes.

No documentário, há um trecho que me chama muito a atenção. Elliot discorre sobre como os negros nos EEUU são chamados de "garotos" (boys), independentemente da idade ou dos cabelos brancos. "Um senhor negro de 70 anos será chamado de 'boy' pelo atendente atrás do balcão, de 20", ela explica - embora não exatamente nessas palavras [já está na hora de assistir novamente]. Me pareceu extremamente agressivo quando ouvi isso. "Como assim ? Não pode isso ser possível... Sinceramente alguém não pode ser tão absurdo. Isso não pode ser verdade"... Já quase começando a bolar teorias sobre as relações pessoais na América do Norte e etc, como se a arrogância fosse exclusividade estadunidense...

Aí lembrei do nosso Brasil, e do nosso "mocinha".]

...e enquanto eu seguro forte meu jornal, Magda também respira fundo, serve o café e sorri. E eu sorrio pra ela.


[atualização (20/10): Terminei esse texto mas fiquei com um gosto esquisito. Me desagradava o final. Tainá veio me salvar, unindo essa entrada com uma mais antiga, e concluindo de forma magistral, nos comentários: "A graça (e revolta) toda está em ouvir gente trombetear por aí o quão agradável nós brasileiros somos, sem comentar sobre nossos modos grosseiros, mal-educados e preconceituosos". E, sim, esse post merecia terminar com uma paulada, e não um sorriso! Obrigado, Tainá.]

10 comentários:

Unknown disse...

Pois eu, um dia, quando tinha uns 25 anos, chamei o segurança de um estacionamento de supermercado de "guardinha", e levei a maior bronca de um colega dele: "Ele não é criança, não!"

Lembro exatamente do meu choque com a bronca! E hoje tenho a clareza que naquela época e naquele dia não tinha. Não que isso seja um atenuante....

Unknown disse...

Engraçado...

Um dia tu mesmo me disseste que brasileiro é muito de "...inho/inha" e eu nunca pensei que isso poderia ser usado de forma depreciativa (acho que na altura te referias ao facto de serem mais doces, "melosos" do nós - leia-se europeus).

Eu estava aqui a pensar... apesar do nosso "mood europeu", eu acho, acredito ou quero acreditar que, em geral, nós - e agora leia-se portugueses, pois não posso falar pelos outros europeus - não tratamos as pessoas de forma diferente, independentemente da sua raça, profissão ou estrato social.

Claro que, em geral... pois, como tu mesmo dizes, arrogância não é exclusividade de um país ou continente e nós temos de facto o nosso..."mood europeu". Mas, mesmo assim, pela primeira vez desde essa nossa conversa, fiquei feliz de nós não usarmos esse "...inha". ;)

Tainá disse...

Um outro exemplo é aquela buzinadinha seguida de um aceno para o porteiro de prédios. Tem gente que ri de quem faz isso, exatamente por achar que aquele profissional não mereça de alguma forma este tipo de atenção. Ou como aquelas experiências que passam no Fantástico, em que mostram pessoas uniformizadas (uniforme de faxina) e que não reconhecidas quando vestidas de outra forma.

A graça (e revolta) toda está em ouvir gente trombetear por aí o quão agradável nós brasileiros somos, sem comentar sobre nossos modos grosseiros, mal-educados e preconceituosos.

A. disse...

Gisa, é um atenuante muito bom, acho!

Catarina, o "inho" tem várias facetas, algumas bem cruéis. Sobre o preconceito, eu acho sim que é algo universal. Estará aqui, em Portugal e no Tibete. De formas diferentes, provavelmente. Mas falo mais do brasileiro, porque o conheço mais.

Tainá, não lembro de ter usado um comentário para acabar um texto, mas dessa vez, fui obrigado a fazê-lo. Obrigado!

Marina disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marina disse...

Se me permitem...

Isso é bem coisa de ser humano, né?

Minha mãe é enfermeira e trabalha num posto de saúde na periferia da minha cidade. Ela trata de gente que tem a voz doce, mas é capaz de matar. Gente que tem verdadeira adoração pelo "amigos" que faz na rua, mas permite que a mãe, já idosa, se perca numa casa imprópria pra qualquer critura viver.Gente adorável diante da dotôra, mas capaz de ser ríspida com o senhor que cuida do arquivo de prontuários assim que sai da sala de atendimento. No final das contas, dentro da sala de atendimento, minha mãe conhece só pessoas doces e bem educadas.

Imagino que sejamos diferentes sim, de qualquer forma. O que nos diferencia, eu penso, não é de onde viemos nem a classificação que nos deram no último Censo. O que nos diferencia é a percepção que temos da vida. A vida é leve pra uns. Pesada, difícil, dura pra outros. E sendo pesada/difícil/dura, parece se justificar tanto mal humor e falta de educação. É tudo uma questão de tirar uns minutos do dia pra prestar atenção na respiração e no que acontece ao nosso redor. Imagine a surpresa em perceber que existem várias pessoas ao redor, cada uma com uma história bacana pra contar (todas clientes de Magda, se for procurar).

No fundo ninguém é obrigado a sorrir pra Magda. Basta tratá-la com um respeito básico, direito de todo ser vivo. Vamo combinar que com um sorriso e duas palavras a mais se vive muito melhor, mas é questão de escolha, de percepção.

Se eu estivesse lá diria a Magda: Como tem gente mal humorada nesse mundo de meu deus, hein, Magda..

Webeatriz disse...

No campo das afetuosidades irônicas e agressivas, o mocinha se assemelha ao "minha filha" que na minha leseira mor ouvi de uma madame mineira, que no maior blá-blá-blá com uma amiga, só me enxergou, quando julgou que eu estava passando na frente delas na fila, e mandou um arrogante: "tô na fila, minha filha!"

Tainá disse...

Quanto ao adendo, por nada. hehehe.

alimped disse...

Concordo e tenho que refletir sobre meus próprios hábitos. Talvez chamasse de "moça", não de "mocinha", mas não conhecendo, chamar como?

O texto me fez lembrar do choque que senti quando me mudei para São Paulo e vi que todo mundo aqui é "tio" ou "tia"...

Unknown disse...

Voltei pra reler...saudades das idéias do Alys, e da cara delas...Fui ler a pergunta do Alim e fiquei buscando saídas. Na verdade, eu acho que o ideal é o "Por favor", e caso a pessoa tenha um crachá (e eu esteja de óculos, rs), o nome da pessoa. O bom de ir ficando mais (e mais e mais)velha - tem que ter um bom, né? - é o fato de que de repente o "moça" ficaria legítimo, de alguma forma. Mas isso lhe daria o direito, por contraste, de dizer, "Pois não, velha".
Quando sou tratada por "m'am" ou "senhora", faço questão de retribuir o tratamento, para profundo incômodo dos "tratantes", ou melhor, dos vendedores, telemarketeiros, porteiros. Enfim...longa discussão pra pedir pro Alys: escreve! escreve!!!!!