23 maio, 2009

Parque de diversões


Se você quiser, eu te levo pra passear. Não, não se preocupe com essa história de dinheiro, não. Eu te levo mesmo. De verdade! Pago o ônibus e tudo, a gente nem precisa ir andando. E no parque, pipoca e sorvete, que não é todo dia que a gente sai pra passear, né ? E fazemos o que você quiser, viu ? Sim, até roda gigante. E lá de cima a gente joga pipoca nos outros, ou então você me dá um beijo. Eu prefiro um beijo, se bem que é divertido jogar pipoca na cabeça dos outros, né ? Mas é mais divertido um beijo. E quando a roda girar e a gente descer, se você quiser, pode até fingir que nada aconteceu... mas eu vou lembrar, viu ? É que coisa divertida assim custa a apagar da cabeça da gente, e jogar pipoca na cabeça dos outros é muito divertido. Mas é mais divertido um beijo.

São Carlos, 23 de maio de 2009
(Mal) inspirado em um trecho, lido ao acaso, de "Leite derramado", do CBH

21 maio, 2009

Tabacaria


Leio e releio tabacaria, e um verso em particular, me chama a atenção:

"Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade."

Nunca, em mil leituras, havia me alongado nessa frase. Sempre parava antes, comovido com a tão crua constatação do desejo: "Não sou nada/ Nunca serei nada. /Não posso querer ser nada. /À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.", ou bem depois, confortado com a companhia que Pessoa me oferecia: "E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.".

Mas hoje, agora, mais que tudo, estou vencido. Não apenas como se soubesse a verdade, porque eu a sei. Mas sobretudo como se fosse incapaz de desistir, e seguisse fantasiando uma versão mentirosa - uma que seja - dessa verdade que dói.

E nada me resta além de escrever versos... e esperar que sorria o dono da Tabacaria. Ou que o Esteves, que eu nem conheço, esse Esteves sem metafísica, simplesmente atravesse essa rua cruzada constantemente por gente. Para nunca mais voltar.

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20 maio, 2009

Windows diet


Ando completamente high-tech.

Comprei até um desses relógios que, além de marcar a hora, fazem uma infinidade de medidas. Agora, é só apertar um botão que sei quantas vezes pulsou meu coração, os segundos que faltam pro por-do-sol e, se brincar, até a quantidade de bom-dias que eu dei desde o começo da semana.

Mas isso não foi tudo.

Num arroubo de inovação, instalei o Windows novo. Versão beta e coisa e tal, um voto de confiança ao tio Bill Gates.

Pois bem, em uma verdadeira convergência de tecnologias, usei o relógio para marcar o boot-time - que é como os high-techs como eu chamam o tempo que demora pro computador começar a funcionar.

Os resultados impressionam.

47 segundos.
E, pasmem, menos de uma caloria!

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18 maio, 2009

Haikai

Sem assunto para um poema
escrevo um haikai
que é mais curtinho.


17 maio, 2009

Bem mais que "simplesmente feliz"


(Da série: críticas pouco sérias)

Há momentos na vida para se ver "Simplesmente Feliz" (Happy-Go-Lucky, Inglaterra, 2008), o novo filme do diretor britânico Mike Leigh conhecido por, nas palavras do NY Times, suas representações de dramas inerentes à vida quotidiana de pessoas comuns.

Simplesmente feliz é exatamente isso: a narração dos altos e baixos (e médios, sobretudo dos médios) do dia-a-dia de uma pessoa que poderia ser eu, ou você. No caso, o recorte de alguns meses na vida de Pauline (Sally Hawkins) -ou Poppy, como ela gosta de ser chamada, uma professora primária de 30 anos que divide seu tempo livre entre conversas com as amigas, aulas de Flamenco ou trampolim e passeios de bicicleta pela cidade. Isso até o momento em que a bicicleta é roubada e os passeios se tornam aulas de auto-escola com o mal-humorado Scott (Eddie Marsan).

O mau-humor de Scott (e também de outros personagens menores) realça a atitude positiva de Poopy diante da vida, e é aí que se corre o risco de ser confundido pelo título do filme. Pauline é muito mais que uma Pollyana brincando, simplesmente feliz, do jogo do contente. Na verdade, Poopy, além de não se deixar afetar demasiadamente pelos contra-tempos da vida ("E a gente nem teve tempo de se despedir", é seu único comentário ao descobrir que a bicicleta foi roubada) sabe jogar com eles e revertê-los a seu favor, usando doses de sarcasmo e ironia que, embora quase imperceptíveis, corariam mesmo a Pollyana já moça.

E é com essa ironia diluida homeopaticamente em largas doses de bom-humor que Poopy vai enfrentando a vida e afetando os que a cercam, das amigas, aos alunos, ao Scott (cujo bordão "Enraha" - usado para simbolizar a função dos espelhos retrovisores - "eye of Ra" - é um dos pontos cômicos do longa).

Um ótimo filme com várias possibilidades de leitura. Diversão e reflexão garantidas desde que a regra básica de timing mencionada no primeiro parágrafo seja respeitada. Aliás, mais que momentos na vida, há estados de espírito necessários para se ver "Simplesmente Feliz". Em um mau momento, depois de levar bronca do chefe, brigar com a namorada ou ir mal naquela entrevista importante, é ele, seu estado de espírito, que determinará se Poopy é apenas uma chata "simplesmente irritante" ou uma professora excelente de uma das muitas mensagens do filme - a de que é preciso aprender a rir de si mesmo.

01 maio, 2009

Não é sábado, mas parece.


Eu cruzo o campus quase vazio e esse vazio enche meu peito. Não é sábado, mas parece. Por um passo ou dois, sinto o que devem sentir os que não sentem nada. E essa paz, ainda que logo tumultuada por pensamentos diversos - preciso trocar a lâmpada da cozinha. tenho que acabar aquele artigo. o que vou almoçar ? - me faz levitar, por um passo ou dois.

Nos fones, Billy Collins recita um poema. Algo sobre o primeiro homem que sonhou e o que deve ter se passado pela sua cabeça primitiva ao despertar, ainda sem entender o que tinha acontecido, lutando para preservar aquela memória esvanecente. Lembro de um outro poema seu, meu preferido, Marginalia, sobre as notas que fazemos nas margens dos livros. Chateado com meus desvaneios, Collins recita algo sobre os prazeres do cigarro. "Ok, você tem minha atenção", digo, levemente contrariado, e mentalmente rabisco em sua voz um comentário qualquer sobre o efeito das suas frases sem rimas em um ex-fumante, numa hora daquelas de um dia que não é sábado, mas parece.

O campus continua vazio. Chego à minha sala. Já não sinto o que devem sentir os que não sentem nada. E enquanto penso na lâmpada da cozinha, no almoço e no artigo, escrevo este texto. Sem entender o que aconteceu, apenas tentando, na minha mente primitiva, preservar aquela memória, eternizar aquele passo ou dois.